sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Rainha de Copas e a guerra dos sexos

Pense rápido: o que os organismos das fotos abaixo têm em comum?
À esquerda, flores de petúnia (Petunia sp.); no centro, a abelha-européia (Apis melífera); à direita, o lagarto Leposoma percarinatum
Uma planta, um inseto, e um lagarto... estes seres vivos, num primeiro momento tão diferentes, compartilham uma particularidade notável nos seus modos de reprodução: eles (por opção ou por obrigação) não necessitam de um parceiro sexual para se reproduzir!
As petúnias, como grande parte das espécies de plantas com flores, é capaz de realizar um processo chamado autofecundação: uma flor produz tanto gametas masculinos (carregados no pólen), quanto gametas femininos. O pólen de uma flor pode fecundar flores distintas, mas também pode fecundar os gametas femininos da própria planta onde foi produzido (o que caracteriza a autofecundação). Assim, um indivíduo de petúnia não precisa necessariamente de outros indivíduos para perpetuar sua linhagem.
Já a abelha possui um mecanismo um pouco diferente: além de produzir filhotes por meio de reprodução sexuada (onde a fêmea fértil cruza com um macho), ela pode optar por um tipo de reprodução que não envolve um parceiro sexual: a partenogênese. Nesse tipo de reprodução, a abelha-rainha (que é a única fêmea fértil da colmeia) pode simplesmente gerar uma cria (sem fecundação, nem nada). Por partenogênese, sozinha, ela gera os zangões (que são os machos da espécie). E, através da reprodução sexuada, cruzando com os zangões, ela produz abelhas fêmeas, que poderão se tornar operárias ou abelhas-rainhas.
Mas o lagartinho da foto leva a coisa toda a um extremo: os lagartos da espécie Leposoma percarinatum simplesmente eliminaram um dos sexos da sua população. Nessa espécie, todos os indivíduos se reproduzem por partenogênese, gerando filhotes idênticos a eles. E não precisa ser um gênio pra deduzir que todos eles são fêmeas, né? Sexo frágil? Nem tanto...

Agora, fique com esse dado do lagartinho (ou seria uma lagartinha?) na cabeça. Pense comigo, amigo leitor. O empenho de um macho na reprodução, se pararmos pra pensar, é quase que ínfimo! As fêmeas, entre outras tarefas, geram o óvulo, recebem o gameta masculino, armazenam os dois gametas dentro de si, provêm um ambiente controlado que possibilite a fecundação, abrigam o embrião em desenvolvimento, protegem a futura cria, alimentam o feto, e muitas vezes ainda cumprem o papel de cuidar do filhote recém nascido! Nós, machos, entramos nessa história apenas com uma celulazinha que fecunda o óvulo fértil!
A primeira vez que li a respeito de partenogênese, como um bom representante macho da minha espécie, não deixei de sentir uma preocupação. Imagina se a evolução nos passa a perna e a mulherada começa produzir, em vez de óvulos, embriões? E se os nossos espermatozoides, nossos valentes nadadores, viram uma coisa obsoleta?

Pois parece que foi bem isso o que aconteceu no caso do lagarto Leposoma: as fêmeas, por partenogênese, produzem cópias iguais de si mesmas. Ou seja, mais fêmeas. Para gerar um macho, elas teriam que cruzar com um macho de sua espécie (portador do cromossomo sexual masculino), e mesmo assim, a chance de nascer um lagarto macho seria de 50%. Resultado? Com o passar do tempo, tudo indica que o número de fêmeas ficou tão grande (100% dos filhotes partenogenéticos, mais 50% dos filhotes de reprodução sexuada seriam fêmeas), que a população de machos, cada vez mais raros, acabou sendo extinta. Hoje, existem apenas fêmeas de Lepidosoma percarinatum.
Conclusão aterrorizante: estaríamos nós machos fadados à extinção? Felizmente, não. Quando comecei a ler sobre partenogênese, sempre me perguntava: “Por que ainda há machos no mundo, se as fêmeas se viram tão bem sozinhas? É muito mais simples gerar crias por partenogênese!”. Pense bem: procurar um parceiro sexual, realizar a corte, o próprio ato sexual – tudo demanda tempo e energia. Sem contar que, ao procurar um parceiro, o indivíduo se expõe a predadores, por exemplo. Pareceria muito mais adaptativo (as gurias vão concordar comigo) uma fêmea gerar, sozinha, um filhote no conforto e segurança da sua toca, não?

Parece que, na maioria dos casos, a resposta é não. E a explicação, novamente, tem a ver com a Teoria da Rainha de Copas. Aliás, se você não conhece esse conceito, sugiro a leitura da primeira parte da série de textos que estou escrevendo sobre o assunto.
Bueno, pra seguir o raciocínio, precisamos fazer uma breve digressão. Veja bem: a Teoria da Rainha de Copas postula que, para se manter adaptada na corrida da evolução, uma população precisa estar constantemente mudando. Precisa, em outras palavras, manter-se evoluindo.
Podemos expressar essa mudança como as diferentes combinações de genes que existem nos organismos da população. O conjunto dos nossos genes é praticamente o manual de montagem e de funcionamento do nosso corpo, e assim é com qualquer ser vivo. Desse modo, em tese, quanto mais diferentes forem os genes de indivíduos de uma população, mais variável (e versátil) ela será frente aos imprevistos surgidos na corrida da Rainha de Copas.

Bom, mas voltando à guerra dos sexos: o fato é que um dos meios mais fáceis e rápidos de introduzir variabilidade na combinação de genes dos espécimes de uma população é misturando os genes de indivíduos distintos. Ou seja, através da união de gametas, masculino e feminino (no caso de animais, espermatozoides e óvulos, respectivamente). Isso só ocorre através da reprodução sexuada ou biparental. Sexo, em outras palavras. Só pra ilustrar o caso, vamos tomar como exemplo a espécie humana. Temos 23 pares de cromossomos. O número de gametas diferentes produzidos por um indivíduo da espécie humana equivale a 223 = 8.388.602 (esse valor é calculável para qualquer organismo, e é válido tanto para o homem quanto para a mulher). Seguindo o cálculo: o número de encontros possíveis entre esses gametas na fecundação é (8.388.602)2, cujo valor aproximado é de 70 trilhões de zigotos possíveis. Dessa forma, a probabilidade de dois irmãos (gerados a partir da fecundação de óvulos distintos) serem iguais é praticamente nula, e do mesmo modo, a variabilidade na combinação de genes de cada organismo da população é enorme!
Considerando que o requisito primordial pra acompanhar a corrida da Rainha de Copas é que a espécie possua variabilidade (para poder se adaptar às pressões de seleção), a reprodução sexuada parece agora uma boa idéia, não? Enquanto, na partenogênese, toda a linhagem é essencialmente igual, na reprodução biparental, parafraseando os Engenheiros do Hawaii, “ninguém é igual a ninguém...”. Assim, concluindo, o modelo evolutivo sugerido pela Teoria da Rainha de Copas favorece a reprodução biparental!
Na próxima postagem, pra fechar a trilogia da Rainha de Copas, vou mostrar como a corrida da Rainha de Copas, e suas premissas, puderam ser visualizadas em laboratório.

Enquanto isso, respirem aliviados, colegas XY: ainda temos um importante (apesar de pequeno) papel na perpetuação da espécie!

2 comentários:

  1. Boa continuação Flavio, estou apenas conseguindo ler agora.

    Dale!

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  2. Dizem que o terceiro filme de uma trilogia é sempre o melhor...será assim nas postagens marujo!

    Dale!

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