quinta-feira, 19 de julho de 2012

Um “monumento à ineficiência” – ou o Design Nada Inteligente


A natureza é perfeita. O corpo humano é perfeito. Tão perfeito quanto o corpo de cada animal. Tudo no seu lugar, do melhor jeito que poderia ser. Uma máquina orgânica sem igual. Uma complexidade que nenhum projetista humano jamais poderia conceber. Apenas um projetista perfeito, detentor de todo conhecimento poderia criar uma obra tão perfeita...
... é o que eles dizem. Os defensores da teoria do Design Inteligente (ou Projeto inteligente, ou Desígnio Divino – o diabo tem muitos nomes) afirmam que a dita perfeição de cada organismo não pode ter surgido com fruto de um mecanismo evolutivo (aliás, erroneamente se vincula a ideia de evolução ao fruto do acaso, mas isso é outra história). De fato, a complexidade da vida é vinculada à obra de um criador especialmente inteligente, capaz de projetos assim grandiosos, livres de falhas. E projetados da melhor maneira possível.

Mas será que é assim mesmo? Há vários exemplos da ineficiência de muitos aspectos morfológicos (os problemas nas articulações, decorrentes da postura ereta adotada pelo homem, são uma “falha” no “projeto”, frequentemente citada). Mas esse que vou apresentar certamente ganha o prêmio de projetista inexperiente:

Todos os tetrápodes (animais com quatro patas, ou seja, anfíbios, mamíferos e répteis, incluindo aves) possuem um nervo – o nervo laríngeo recorrente, ou NLR – responsável por, entre outras coisas, coordenar sinais e estímulos entre o tronco cerebral e a laringe. Uma de suas principais funções é coordenar a deglutição e a aspiração, para que os alimentos e a água não entrem traqueia abaixo, pulmão adentro. Em palavras simples, ele é um nervo de vital importância.
Esse nervo se forma quando o animal ainda é um embrião. Desce do tronco cerebral em direção ao coração, contorna o arco aórtico, e volta em direção ao seu alvo original, perto da laringe.

No esquema, o nervo laríngeo recorrente aparece em branco, passando em volta do arco aórtico (a curva espessa representada em preto).

Quando o embrião está em formação, a laringe e o arco aórtico estão próximos um do outro. E é aí que a cagada no projeto começa a aparecer: quando o animal se desenvolve, o coração e a laringe vão se afastando um do outro (porque o pescoço começa a se formar). Isso faz com que o coração, à medida que se afasta da laringe, vá esticando o nervo laríngeo recorrente (NLR). Essa volta que ele faz em torno do arco aórtico faz com que o nervo tenha virtualmente o dobro do comprimento que teria, se simplesmente fosse do tronco cerebral até a garganta, sem dar essa voltinha lá pelas bandas do coração.
Em humanos, em princípio, isso não é um problema, afinal nosso pescoço é curtinho. Mas dá uma olhada nesse cara, e imagina o tamanho do problema:




As maiores girafas têm pescoços de cerca de 2,4 metros. Faça a conta comigo, e você concluirá que o NLR de uma girafa grande chega a quase 5 metros! Isso é que é desperdício na hora de fazer a fiação elétrica do bicho...
Mas a coisa não para por aí. Voltemos à anatomia básica. Quando o cérebro precisa enviar impulsos para uma determinada parte do corpo, ele muitas vezes se vale de uma ligação direta, ou seja, um neurônio (ou um feixe de neurônios) que se estenda até onde o estímulo precisa chegar. Por exemplo, os nervos faciais possuem neurônios que podem ter vários centímetros de comprimento, ligando o cérebro às muitas partes do rosto.
Repito: vários centímetros. Um neurônio. Uma CÉLULA, com vários centímetros. Louco, né?
Mas fica ainda mais. O NLR, também é um feixe de neurônios, extremamente alongados, que vão do cérebro a seu destino. E o NLR de uma girafa chega a quase CINCO metros de comprimento. Ou seja, os neurônios que compõem o NLR também são SUPER-CÉLULAS DE CINCO METROS! Ainda que seja extremamente delgado (microscopicamente delgado, na verdade), um neurônio de cinco metros não é pouca coisa. Fantástico, não?

Mas voltemos aos problemas. Um impulso nervoso normalmente sai de sua origem (de um lado do neurônio), percorre todo o comprimento do axônio (a parte alongada), até chegar a seu destino. E a velocidade desse impulso é constante, via de regra. Assim, quanto mais longo o caminho que o impulso tiver que percorrer, mais lenta será a resposta. Um nervo de dois centímetros terá uma resposta muito mais rápida, se comparado a um nervo de cinco metros. Isso traz uma consequência, por exemplo na hora de coordenar uma deglutição. Quando uma girafa engole, ela precisa coordenar dois nervos: o nervo laríngeo recorrente (nosso amigo NLR de 5 metros), que fecha a entrada da laringe (bloqueando a entrada para o pulmão); e o nervo laríngeo superior (NLS), que controla a contração da faringe (empurrando a comida esôfago abaixo). Se esse controle não for preciso, e o nervo laríngeo superior mandar o bicho engolir antes de o NLR fechar a laringe, a comida vai em direção à traqueia, e o animal se engasga. E uma girafa engasgada é dose! A questão é que esses nervos diferem em tamanho. Enquanto o NLR tem 5 metros, devido àquela volta enorme pelo arco aórtico, o NLS é curtinho, com menos de um metro. E sua resposta acaba sendo mais rápida que a do NLR. Assim, a coordenação entre esses dois nervos é bem mais complicada que parece.

Mas por que não complicar mais? A girafa tem um pescoço longo, mas vamos piorar o quadro? Saca esse sujeito aqui:

Saurópodos estão entre os dinossauros mais famosos, devido a este baita pescoção. Esse da ilustração, o Supersaurus, tem o pescoço estimado em 14 m. Multiplicando por dois, isso dá um nervo laríngeo recorrente de vinte e oito metros. Com neurônios de VINTE E OITO METROS. E tu achando que o pescoço da girafa era comprido, né... Se pra uma girafa, a coordenação motora na hora de engolir já era difícil, imagina esse cara.

Figura comparando o tamanho relativo do NLR entre um humano, uma girafa, e um saurópode.


Se o designer tivesse sido um pouco mais inteligente, teria feito o nervo ir do cérebro até a garganta, apenas, sem dar toda essa volta pescoço abaixo, e pescoço acima.

Essa situação ilustra como a evolução, apesar de parecer perfeita, está extremamente amarrada a questões de desenvolvimento embriológico. Pelo mero motivo de o coração e a faringe estarem próximos um do outro, quando no embrião, esse monumento à ineficiência morfológica se forma. E a evolução teve que dar um jeito de fazer as coisas funcionarem. Qualquer designer faria diferente, encurtando o caminho do nervo. Mas a evolução não é um designer. E exemplos como esse, na verdade, reforçam que não há de fato nenhum designer projetando a vida.

O nervo parece ineficiente, a morfologia não é a ideal, e o resultado não é nada perfeito. Mas o animal funciona (ou funcionou, no caso do Supersaurus). Pra mim, isso é mais fantástico que qualquer engenheiro projetando a natureza.



sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Rainha de Copas e a guerra dos sexos

Pense rápido: o que os organismos das fotos abaixo têm em comum?
À esquerda, flores de petúnia (Petunia sp.); no centro, a abelha-européia (Apis melífera); à direita, o lagarto Leposoma percarinatum
Uma planta, um inseto, e um lagarto... estes seres vivos, num primeiro momento tão diferentes, compartilham uma particularidade notável nos seus modos de reprodução: eles (por opção ou por obrigação) não necessitam de um parceiro sexual para se reproduzir!
As petúnias, como grande parte das espécies de plantas com flores, é capaz de realizar um processo chamado autofecundação: uma flor produz tanto gametas masculinos (carregados no pólen), quanto gametas femininos. O pólen de uma flor pode fecundar flores distintas, mas também pode fecundar os gametas femininos da própria planta onde foi produzido (o que caracteriza a autofecundação). Assim, um indivíduo de petúnia não precisa necessariamente de outros indivíduos para perpetuar sua linhagem.
Já a abelha possui um mecanismo um pouco diferente: além de produzir filhotes por meio de reprodução sexuada (onde a fêmea fértil cruza com um macho), ela pode optar por um tipo de reprodução que não envolve um parceiro sexual: a partenogênese. Nesse tipo de reprodução, a abelha-rainha (que é a única fêmea fértil da colmeia) pode simplesmente gerar uma cria (sem fecundação, nem nada). Por partenogênese, sozinha, ela gera os zangões (que são os machos da espécie). E, através da reprodução sexuada, cruzando com os zangões, ela produz abelhas fêmeas, que poderão se tornar operárias ou abelhas-rainhas.
Mas o lagartinho da foto leva a coisa toda a um extremo: os lagartos da espécie Leposoma percarinatum simplesmente eliminaram um dos sexos da sua população. Nessa espécie, todos os indivíduos se reproduzem por partenogênese, gerando filhotes idênticos a eles. E não precisa ser um gênio pra deduzir que todos eles são fêmeas, né? Sexo frágil? Nem tanto...

Agora, fique com esse dado do lagartinho (ou seria uma lagartinha?) na cabeça. Pense comigo, amigo leitor. O empenho de um macho na reprodução, se pararmos pra pensar, é quase que ínfimo! As fêmeas, entre outras tarefas, geram o óvulo, recebem o gameta masculino, armazenam os dois gametas dentro de si, provêm um ambiente controlado que possibilite a fecundação, abrigam o embrião em desenvolvimento, protegem a futura cria, alimentam o feto, e muitas vezes ainda cumprem o papel de cuidar do filhote recém nascido! Nós, machos, entramos nessa história apenas com uma celulazinha que fecunda o óvulo fértil!
A primeira vez que li a respeito de partenogênese, como um bom representante macho da minha espécie, não deixei de sentir uma preocupação. Imagina se a evolução nos passa a perna e a mulherada começa produzir, em vez de óvulos, embriões? E se os nossos espermatozoides, nossos valentes nadadores, viram uma coisa obsoleta?

Pois parece que foi bem isso o que aconteceu no caso do lagarto Leposoma: as fêmeas, por partenogênese, produzem cópias iguais de si mesmas. Ou seja, mais fêmeas. Para gerar um macho, elas teriam que cruzar com um macho de sua espécie (portador do cromossomo sexual masculino), e mesmo assim, a chance de nascer um lagarto macho seria de 50%. Resultado? Com o passar do tempo, tudo indica que o número de fêmeas ficou tão grande (100% dos filhotes partenogenéticos, mais 50% dos filhotes de reprodução sexuada seriam fêmeas), que a população de machos, cada vez mais raros, acabou sendo extinta. Hoje, existem apenas fêmeas de Lepidosoma percarinatum.
Conclusão aterrorizante: estaríamos nós machos fadados à extinção? Felizmente, não. Quando comecei a ler sobre partenogênese, sempre me perguntava: “Por que ainda há machos no mundo, se as fêmeas se viram tão bem sozinhas? É muito mais simples gerar crias por partenogênese!”. Pense bem: procurar um parceiro sexual, realizar a corte, o próprio ato sexual – tudo demanda tempo e energia. Sem contar que, ao procurar um parceiro, o indivíduo se expõe a predadores, por exemplo. Pareceria muito mais adaptativo (as gurias vão concordar comigo) uma fêmea gerar, sozinha, um filhote no conforto e segurança da sua toca, não?

Parece que, na maioria dos casos, a resposta é não. E a explicação, novamente, tem a ver com a Teoria da Rainha de Copas. Aliás, se você não conhece esse conceito, sugiro a leitura da primeira parte da série de textos que estou escrevendo sobre o assunto.
Bueno, pra seguir o raciocínio, precisamos fazer uma breve digressão. Veja bem: a Teoria da Rainha de Copas postula que, para se manter adaptada na corrida da evolução, uma população precisa estar constantemente mudando. Precisa, em outras palavras, manter-se evoluindo.
Podemos expressar essa mudança como as diferentes combinações de genes que existem nos organismos da população. O conjunto dos nossos genes é praticamente o manual de montagem e de funcionamento do nosso corpo, e assim é com qualquer ser vivo. Desse modo, em tese, quanto mais diferentes forem os genes de indivíduos de uma população, mais variável (e versátil) ela será frente aos imprevistos surgidos na corrida da Rainha de Copas.

Bom, mas voltando à guerra dos sexos: o fato é que um dos meios mais fáceis e rápidos de introduzir variabilidade na combinação de genes dos espécimes de uma população é misturando os genes de indivíduos distintos. Ou seja, através da união de gametas, masculino e feminino (no caso de animais, espermatozoides e óvulos, respectivamente). Isso só ocorre através da reprodução sexuada ou biparental. Sexo, em outras palavras. Só pra ilustrar o caso, vamos tomar como exemplo a espécie humana. Temos 23 pares de cromossomos. O número de gametas diferentes produzidos por um indivíduo da espécie humana equivale a 223 = 8.388.602 (esse valor é calculável para qualquer organismo, e é válido tanto para o homem quanto para a mulher). Seguindo o cálculo: o número de encontros possíveis entre esses gametas na fecundação é (8.388.602)2, cujo valor aproximado é de 70 trilhões de zigotos possíveis. Dessa forma, a probabilidade de dois irmãos (gerados a partir da fecundação de óvulos distintos) serem iguais é praticamente nula, e do mesmo modo, a variabilidade na combinação de genes de cada organismo da população é enorme!
Considerando que o requisito primordial pra acompanhar a corrida da Rainha de Copas é que a espécie possua variabilidade (para poder se adaptar às pressões de seleção), a reprodução sexuada parece agora uma boa idéia, não? Enquanto, na partenogênese, toda a linhagem é essencialmente igual, na reprodução biparental, parafraseando os Engenheiros do Hawaii, “ninguém é igual a ninguém...”. Assim, concluindo, o modelo evolutivo sugerido pela Teoria da Rainha de Copas favorece a reprodução biparental!
Na próxima postagem, pra fechar a trilogia da Rainha de Copas, vou mostrar como a corrida da Rainha de Copas, e suas premissas, puderam ser visualizadas em laboratório.

Enquanto isso, respirem aliviados, colegas XY: ainda temos um importante (apesar de pequeno) papel na perpetuação da espécie!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Dica de Livro: A Pré-História da Mente





Será possível entender a  evolução humana observando o comportamento do homem e dos símios (macacos mais próximos evolutivamente dos humanos)? Como o estudo da cultura humana pode nos indicar evidências da evolução humana?
Em busca das origens da arte, da religião e da ciência, o livro A Pré-História da Mente enfoca os seguintes temas: o drama do nosso passado; a arquitetura da mente moderna; símios, macacos e a mente do elo perdido; a mente do primeiro fabricante de instrumentos; as inteligências múltiplas da mente dos humanos arcaicos; o big bang da cultura humana - as origens da arte e da religião; como tudo aconteceu. E traz uma nova proposta para evolução da mente.

O autor, Steven Mithen, Arqueólogo especialista em Arqueologia Cognitiva.
Mithen propõe a evolução da mente humana através da recapitulação e do modelo catedrático da mente. A evolução da mente humana teria passado por três fases: 1) domínio geral; 2) domínio geral com módulos específicos independentes; 3) domínio geral com módulos específicos sob controle de um processador central.
Um livro de leitura muito agradável com belas ilustrações. Pode não agradar muito os religiosos, pois trava uma dúvida permanente das teorias evolutivas do homem que confrontam diretamente com algumas idéias religiosas.
O livro não é muito palatável para pessoas completamente leigas no assunto. É indicado para  biólogos, historiadores, geólogos, arqueólogos, psicólogos e áreas afins. Para estudantes de ensino médio pode ser um trampolim para o amor ou o ódio da teoria evolutiva.
O livro custa por volta de 60 reais, novo. É possível achá-lo em alguns sebos, porém não é muito comum.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Árvores da Evolução

A utilização de uma árvore como ilustração para exemplificar a evolução ao longo do tempo é comum e muito pertinente. Essa imagem demonstra bem o como o processo evolutivo não leva simplesmente a modificação, mas também a diversificação, e sua análise com calma ajuda a derrubar alguns mitos. Olhe pela a janela e observe uma árvore na rua. Se não tiver como, facilito sua vida, olhe para a figueira da foto a seguir.



Seu tamanho impressiona, com seus galhos intensamente ramificados, cheios de folhas, todos tendo como base o tronco central robusto. Porém, essa figueira não foi sempre assim: um dia ela foi uma pequena semente, que germinou dando origem a uma pequena planta, com uma única folha. Essa pequena folha aos poucos foi gerando novos ramos, que geraram outros, e mais outros, até que ao longo dos anos se tornou essa maravilha aí de cima. Com a imensa diversidade da vida encontrada atualmente ocorreu o mesmo: no início era somente uma única espécie (a primeira folha a sair da semente), que ao se modificar gerou novas linhagens (os novos ramos). Essas linhagens, por si, vão se ramificando cada vez mais. Já podemos retirar daí um primeiro mito – ou má-compreensão – da síntese evolutiva: a evolução não se dá de forma linear, e sim se ramifica, se diversifica cada vez mais. As espécies, ao se modificarem, se diferenciam em novas variedades que seguirão um rumo diverso aos demais não diferenciados. Poderão surgir daí duas novas linhagens, dois novos ramos na nossa “árvore da evolução”. Um simples crescimento da árvore, sem ramificação, geraria algo mais parecido com uma palmeira que com uma figueira, uma imagem linear. E evolução não toma uma direção, ela é multidirecional.
Bom, retomemos nossa plantinha. Ao longo do seu crescimento, alguns ramos se tornam maiores que outros, enquanto existem aqueles que acabam por não vingar. Em um determinado momento, um ramo pode vir a cair por causa de sua fragilidade em relação aos demais, como por exemplo, quando ocorre uma tempestade. Podemos aproveitar para fazer mais uma metáfora com esse evento: a tempestade seleciona os galhos mais firmes e derruba os mais frágeis, assim como o ambiente seleciona as linhagens mais aptas ao longo do tempo. Essa é a seleção natural.
De volta a nossa figueira adulta, essa que vemos na foto, temos assim uma imagem da diversidade atual, onde as folhas seriam as espécies viventes, enquanto os galhos representariam os intermediários até chegarmos a essas espécies, mostrando as inter-relações entre as elas. Folhas de um mesmo galho são mais aparentadas, tem uma origem mais próxima, que folhas de galhos mais distantes. Ou seja, o “galho dos répteis escamados” se ramifica em alguns sub-galhos, assim como o “galho dos mamíferos”. Dentre esses sub-galhos, existe o “sub-galho dos primatas”, que contém a “folha dos chimpanzés”, a "folha do gorila”, a “folha do homem”. Em outro sub-galho, o dos felinos, existem as “folhas do tigre, da onça, do gato”. O homem está no mesmo sub-galho do chimpanzé e do gorila. Então ele é mais aparentado com eles que com o tigre, a onça e o gato. Porém, em relação às serpentes e os lagartos, que estão no “galho dos répteis escamados”, o homem é mais aparentado com os felinos.
Um segundo engano é comum quando falamos de parentesco: a confusão com ancestralidade. Parentes compartilham ancestrais. Por exemplo: não tivemos origem nos chimpanzés, e sim compartilhamos um ancestral comum com eles. Também compartilhamos ancestrais com os felinos e com os répteis escamados, assim como com qualquer organismo na Terra, porém o parentesco com eles é cada vez mais distante.
Aproveito para desmistificar um terceiro mito: o dizer que tal espécie é “mais evoluída” que outra. Todas as espécies atuais são igualmente evoluídas, sejam elas uma bactéria ou o homem. A diferença é quando sua linhagem surgiu. O galho que contêm as bactérias está mais próximo da base da árvore que o dos humanos, sendo os humanos mais derivados que as bactérias. Ambas as espécies são adaptadas, a grande questão é a quê. Na árvore, todas as folhas se mantêm, porém, cada uma no seu ramo.


A imagem de uma árvore para demonstrar a evolução é tão utilizada que até possui um nome na biologia: árvores filogenéticas. A mais famosa, conhecida como Árvore da Vida (Tree of Life, figura acima), foi criada pelo naturalista alemão Ernst Haeckel em 1876, porém com o bicentenário de Charles Darwin, o esboço de uma árvore em um de seus cadernos (figura abaixo), de 1837, tomou seu espaço.



quarta-feira, 20 de julho de 2011

A corrida da Rainha de Copas e a Evolução biológica

Uma passagem bastante notável do livro Alice Através do Espelho (a sequência para o mais popular Alice no País das Maravilhas) remete a uma corrida proposta pela Rainha de Copas, onde Alice, apesar de correr o máximo que pode, sempre se mantém no mesmo lugar. A Rainha de Copas, ao ser indagada por que as pessoas não se deslocavam durante a corrida, responde enfaticamente: “Como você vê, aqui é preciso correr o máximo que puder para ficar no mesmo lugar. Se você quiser parar em qualquer outro lugar que não este, vai precisar correr pelo menos duas vezes mais rápido!

A corrida da Rainha de Copas

Essa “corrida sem sair do lugar” inspirou (e denomina) uma importante hipótese evolutiva, a hipótese da Rainha de Copas (Red Queen hypothesis). Imagine a seguinte situação hipotética:
Em um determinado ambiente há dois organismos (vamos imaginar um vegetal qualquer, e a lagarta que o preda). Estas duas espécies estão em uma constante luta pela sobrevivência. A planta, imposta aos constantes ataques das lagartas, precisa desenvolver meios de repelir o ataque do predador (produzindo toxinas que a tornem venenosa, por exemplo). A lagarta, por sua vez, precisa encontrar estratégias evolutivas para sobrepujar a toxina da planta (ou seja, tornar-se resistente ao veneno).
Tracemos uma linhagem hipotética de como as coisas mudariam com o passar do tempo:

1)   Num primeiro momento, a maioria das plantas da espécie possuem níveis baixos de toxina (vamos chama-las de plantas palatáveis). Apenas alguns indivíduos possuem a predisposição genética para serem mais tóxicos. A população de lagartas também possui níveis variados de resistência ao veneno (umas mais, umas menos). Nessa situação, as lagartas vão sistematicamente predar as plantas menos venenosas (uma vez que as plantas mais tóxicas repelem as lagartas efetivamente). Desse modo, a população de plantas palatáveis vai reduzir em quantidade (uma vez que elas são sempre devoradas), até se extinguirem. Restarão apenas as plantas mais venenosas, que seguirão se reproduzindo, até que restem apenas plantas tão tóxicas quanto elas.

2)  A partir daí, as lagartas se deparam com um problema: agora, num ambiente onde só há plantas venenosas, apenas as lagartas resistentes ao veneno sobrevivem (as lagartas suscetíveis à toxina da planta morrem envenenadas). Assim, a população de lagartas suscetíveis se extingue, e restam apenas as lagartas melhor adaptadas. Neste momento, as populações estão de novo equilibradas, como no primeiro momento. Ou seja, a evolução agiu como na corrida da Rainha de Copas. Os organismos mudaram, mas as populações no fim se mantiveram “no mesmo lugar”!

3)  Novamente, as lagartas voltam a atacar a população de plantas, de modo que, para sobreviver, as plantas precisam desenvolver níveis mais concentrados de toxina. Esses indivíduos mais tóxicos são selecionados e passam a ser o componente principal da população (exatamente como nas etapas anteriores).

Daí por diante, vamos observar um ciclo nessas nossas populações hipotéticas: as plantas se tornando cada vez mais venenosas, as lagartas cada vez mais resistentes, como numa corrida armamentista (que aliás é outra maneira a que podemos nos referir à teoria da Rainha de Copas). E esse processo de evolução, onde um organismo seleciona o outro (ou seja, o grau de toxinas da planta seleciona as lagartas mais resistentes, e vice-versa) chama-se coevolução. Para que as populações não entrem em extinção, é necessário que surjam novas características, (no caso das lagartas, adaptações para competir com a presa, por exemplo). Essas características poderiam surgir como mutações de genes que viessem a propiciar mais resistência, ou comportamentos que permitissem a nossa lagarta fictícia contornar os meios de defesa da planta hipotética.
Pois bem. Saindo do “País das Maravilhas” da nossa população de faz-de-conta, vamos ver um exemplo real desse quadro: o clássico exemplo da borboleta-monarca (Danaus plexipus) e da asclépia, a planta da qual suas lagartas se alimentam (Asclepias curassavica):


À esquerda, a asclépia (Asclepias curassavica); no centro a lagarta da monarca (Danaus plexipus); à direita, a monarca adulta, se alimentando do néctar de uma lantana (Lantana camara). 


A asclépia é uma planta que produz um látex (aquele “leite” que sai de algumas plantas quando quebradas) bastante tóxico para as lagartas da monarca. Para se alimentar das folhas da asclépia, as lagartas precisam ter uma certa resistência ao veneno. Mas além disso, estas lagartas desenvolveram uma estratégia comportamental que, para uma larva, é no mínimo genial: as lagartas, antes de comerem a planta, fazem um corte na base das folhas, e esperam até que o látex escorra caule abaixo (levando a maior parte das toxinas com ele). Assim, elas ingerem uma quantidade muito menor de veneno ao consumirem a planta!
Não se sabe muito bem como a coevolução agiu para que surgisse o veneno da asclépia, ou a tolerância das lagartas da monarca, ou mesmo o comportamento de alimentação que essas lagartas exibem. Pondera-se apenas que os dois organismos, ao menos em parte, direcionaram a evolução um do outro. Esse é um dos problemas que a hipótese da Rainha de Copas enfrenta: vemos seus efeitos constantemente na natureza, mas é difícil mensurar como a coevolução atua nos organismosNão enxergamos a corrida em si, apenas o constante empate entre seus competidores!
Até pouco tempo: nas próximas postagens, vou lhes apresentar um experimento muito elegante (e muito simples), onde os cientistas conseguiram observar em laboratório alguns efeitos da corrida da Rainha de Copas em tempo real. Mas, por enquanto, fiquemos com nossas lagartas no campo de asclépias...





Homenagem a Gregor Mendel

Segue uma pequena homenagem do Diário do Beagle ao aniversário de 189 anos de Gregor Mendel Johann Mendel (1822-1884), botânico e meteorologista austríaco que através de seus experimentos com ervilhas revolucionou o conhecimento sobre hereditariedade, sendo fundamental para a Genética e Evolução.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A bordo, marujos!

Este blog foi criado com a percepção de um problema – mais um entre tantos – existente na educação brasileira, com conseqüências na sociedade: a má compreensão da ciência. Infelizmente, o estudante, o cidadão, e muitas vezes o próprio professor pouco compreendem o que de fato é a ciência, como funciona, qual a sua importância. E pela não-compreensão do que é a ciência, as pessoas deixam de notar em como a ciência está presente nas nossas vidas.

Este coletivo tem uma série metas: através da discussão informal, e usando de temas relativos principalmente às Ciências Biológicas (nossa área de especialização), queremos desmistificar a ciência. Queremos mostrar o quão cotidiana ela é, e como o conhecimento deve estar (e muitas vezes de fato está) ao alcance de todos.

A Biologia é um tema fascinante para desenvolver essas idéias, por ser um campo bastante próximo a todos nós. Quem nunca ficou por alguns minutos observando um besouro? Quem nunca ouviu falar em desenvolvimento sustentável? Em reciclagem? Em DNA? Em Evolução?

E o mais incrível na Biologia, é que virtualmente TODOS os seus assuntos são inter-relacionáveis. E todos eles podem ser discutidos e apresentados de forma simples, dinâmica, acessível e atraente, mesmo quando tratam de temas complicados. A ciência (apesar de precisar de suas muitas equações, de seus experimentos mirabolantes, de suas pilhas e pilhas de livros em línguas estranhas) não precisa ser complexa o tempo todo.

Por vezes, a linguagem extremamente técnica adotada pelo cientista acaba por limitar o interesse do público geral a achados curiosos ou assuntos polêmicos. A descoberta de um novo dinossauro desperta a atenção do público, assim como as células-tronco ocupam um espaço constante nos noticiários. Agora: por que o dito dinossauro é importante? Qual a real extensão da polêmica sobre as células tronco? O que de fato significa aquecimento global?

Interpretar esses notícias, e compreender como as recentes descobertas afetam nosso mundo nem sempre é tarefa fácil. E para descomplicar um pouco a vida do leitor, esse blog vem somar-se ao crescente número de divulgadores da Ciência. Queremos apresentar a ciência de forma simples. Queremos que nomes como Lamarck, Gould, Watson e Crick sejam um pouquinho mais familiares. Que Darwin deixe de ser aquele barbudo que, dizem as más línguas, espalhou por aí que somos descendentes dos macacos.

Assim como o velho Darwin um dia embarcou num navio e encheu páginas de diários de bordo com fascinantes histórias do mundo natural, o nosso Diário do Beagle está aqui para retratar o dia-a-dia da fantástica viagem que é conhecer a ciência, e compreender o mundo. O Diário do Beagle é uma tentativa de democratização do acesso a informações e conhecimento da área das ciências biológicas, em toda sua amplitude. Para isso, buscamos biólogos que trabalhem nas mais diversas áreas. Seu nome é uma homenagem ao navio que mudou a história da humanidade, o HMS Beagle, que teve como tripulante ninguém menos o naturalista Charles Darwin.